Esperança e Desespero Toma Curdos Enquanto Kobanê Continua a Resistir

10th
Oct. × ’14

por Joris Leverink em 10 de Outubro de 2014

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Com jatos de combate sobrevoando e ferozes embates eclodindo entre a polícia turca e manifestantes curdos, Joris Leverink traz informações do Curdistão.

O editor da ROAR, Joris Leverink, está no Curdistão do Norte na fronteira entre Turquia e Síria para noticiar sobre a batalha de Kobanê e a luta curda pela autonomia democrática. Esta é a primeira de uma série de relatos em primeira mão que serão publicados ao longo dos próximos dias.

Depois de alguns dias no Curdistão do Norte, tendo falado com várias pessoas e visto e ouvido mais do que minha cabeça é capaz de razoavelmente processar, chegou a a hora de compartilhar algumas observações e experiências. Dois dias atrás, na terça-feira, 7 de Outubro, curdos por toda a Turquia, mas especialmente na região sudoeste do país, tomaram as ruas em protesto contra o papel da Turquia no massacre que ronda Kobanê. A proporção e intensidade dos protestes são sem precedentes (ao menos desde da violência nos anos 90), assim como a reação do Estado. A opinião compartilhada pela maioria das pessoas que encontrei nos últimos dias é de que esse é o começo de um novo levante curdo.

Antes e qualquer coisa, o que precisa ser deixado absolutamente claro é que os curdos não estão protestando em exigência de uma intervenção militar da Turquia, como foi apresentado em diversos centros de mídia convencionais. Ao contrário, os manifestantes — tanto curdos quanto simpatizantes — exigem o fim do apoio velado da Turquia ao ISIS, e que a fronteira em Kobanê seja aberta para deixar os refugiados saírem e a ajuda humanitária e as armas entrarem.  Todas as pessoas com quem falei em Diyarbakir, Urfa, Suruç e nos vilarejos na fronteira concordam em uma coisa: o ISIS não poderia ter crescido o tanto que cresceu e conquistado o tanto que conquistou de Rojava se não fosse o apoio material, financeiro e logístico recebido pelos extremistas pelo Estado Turco.

O Jogo Sujo da Turquia

Em um vilarejo no entorno de Suruç, a cidade turca fronteiriça em frente a Kobanê, alguns jovens — todos curdos sírios — me dizem que não conseguem dormir de noite pelo medo e a preocupação. Pode-se ver Kobanê no horizonte, e colunas de fumaça sobem por sobre a cidade, resultado dos ataques aéreos da coalização, com aviões constantemente sobrevoando sobre nossas cabeças. Esses homens curdos são parte de um grupo de seis famílias que cruzaram a fronteira turca juntas e que agora encontraram refúgio na casa de um fazendeiro local. Eles me confirmam que que viram com os próprios olhos como um vagão entrou na Síria vindo da Turquia, carregado com tanques e munições, com destino a uma localização desconhecida na área controlada pelo ISIS.

Abdurrahman Abdulkhadir, um curdo sírio em torno dos 50 anos que abandonou sua casa vinte dias atrás, é bem claro quanto esse assunto: no vilarejo de Xerbisan (cerca de 30 quilômetro de Kobanê) onde ele tinha uma cafeteria, viu a YPG/YPJ (Forças de Defesa Popular e Forças de Defesa das Mulheres) destruir quatro tanques do ISIS. De acordo com Abdurrahman, o exército turco observou a batalha entre a YPG/YPJ e o ISIS de longe, e não muito tempo depois disso que viu um trem cruzando a Síria vindo da Turquia, carregando exatamente quatro tanques para cobrir as perdas que o ISIS sofreu nas mãos da YPG/YPJ.

Em outra ocasião, ele notou um grupo de homens com “armas de cano longo, como aquelas de franco-atiradores” vindo da Turquia. Isso foi logo depois que a YPG/YPJ tinha forçado o ISIS a se retirar, e esse grupo de homens armados mudou o curso da batalha, eventualmente matando matando mais de oitenta combatentes da YPG/YPJ. Claro que devemos nos lembrar que estes não são fatos profundamente sustentados, mas quando se ouve as mesmas “histórias” e “rumores” de tempos em tempos, vindos de dezenas de fontes diferentes, é difícil não se perguntar se não há algo de verdade neles.

Apoio a Revolução de Rojava

Entre todas diversas conversas que tive com refugiados sírios nos últimos dias, houve um tema recorrente: todas pessoas com quem falei expressaram total apoio a revolução social de Rojava. Um pai de duas crianças, com 42 anos, que agora vive com sua família no quintal de uma mesquita local em Suruç, sobrevivendo da generosidade do município para se alimentarem, deixa bem claro que sua vida nunca foi tão boa quanto quando foi instalado a autonomia democrática em Rojava: “Era lindo. Todo mundo podia desfrutar de suas liberdades, homens e mulheres eram tratados como iguais e não havia atrito entre os diferentes grupos religiosos e étnicos.”

Ele me conta que sua barba ficou branca nas últimas duas semanas: “Nunca vi nada assim em minha vida”. Ele então continua, me explicando que preferia viver numa tenda em Rojava do que ficar aqui na Turquia, onde tem tanto medo do governo que não quer nem me dizer seu nome. “Há duas coisas certas na vida de um curdo: opressão e morte.” Infelizmente, uma coisa que poderia mudar o destino curdo, a revolução de Rojava, não foi outra coisa senão exterminada em Kobanê devido os ataques contínuos do ISIS e os esforços cínicos do governo turco.

Abdurrahman ressalta que o sistema de cantões, um tipo de confederação de comunidades locais que se auto-governam através de conselhos locais e democracia direta, não foi meramente benéfica aos curdos, mas foi um projeto em comum envolvendo todos os grupos étnicos locais, incluindo assírios, iazidís, turcos, árabes e outros.

Wahab e Serhat, dois jovens ativistas da Ação Revolucionária Anarquista (DAF) na Turquia que estão na fronteira há mais de duas semanas para mostrar solidariedade com curdos de Kobanê, ajudam refugiados em ambos os lados da fronteira e fazem a guarda em um dos vilarejos para impedir que aspirantes a jihadistas cruzem a fronteira para se juntar ao ISIS. Eles compartilham a opinião de Abdurrahman: “A revolução em Rojava é contra a formação do estado e as gangues terroristas, é baseada na emancipação e na democracia direta; é sobre autonomia e auto-determinação, e rejeita qualquer forma de hierarquia e autoridade.”

Distúrbios Continuam

Enquanto escrevo essas palavras na cidade de Urfa, posso ouvir a polícia local atirando bombas de gás nos manifestantes pró-curdos a algumas quadras daqui. Ao mesmo tempo, ouço os jatos de combate das forças de coalizão passando à caminho de Kobanê, que está cerca de cinquenta quilômetros ao sul daqui. A situação no Curdistão do Norte (sudoeste da Turquia) está escalando a cada minuto. Apesar dos pedidos do líder da PKK, Öcalan, e o líder do Partido Democrático Popular (HDP), Demirtaş, para cessar a violência, outras dez mortes foram relatadas hoje, somadas as mais de vinte mortes dos últimos dois dias.

As vítimas incluem não só manifestantes curdos, mas também oficiais de polícia e apoiadores do ISIS, espalhando o medo de uma escalada do conflito civil nas províncias do sul da Turquia. A previsão de que uma nova geração de curdos está radicalizada ao ponto de que até a PKK tem dificuldade em mantê-los alinhados parece estar se tornando verdade, e só podemos nos perguntar como as ruas, bairros e cidades do Curdistão do Norte ficarão se (ou quando) Kobanê eventualmente cair nas mãos do ISIS.

Joris Leverink é um escritor freelance em Istambul e editor da ROAR Magazine Você pode segui-lo no Twitter em @Jorislever.


Leia o original em inglês na página da ROAR Magazine: http://roarmag.org/2014/10/kurdistan-kobane-turkey-isis/

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Kobani Está se Tornando uma Guerra da Turquia

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Oct. × ’14

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À medida que a fumaça se levanta da cidade síria de Kobani, tanques militares da Turquia se posicionam no lado turco da fronteira, como se vê próximo a passagem de Mursitpinar na fronteira turco-síria da província de Sanliurfa. 8 de Outubro de 2014.  (foto por REUTERS/Umit Bektas)

Kobani está se tornando uma guerra da Turquia.

Enquanto o governo do Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP) continua listando condições a serem cumpridas pelo Partido da União Democrática (PYD) para que a Turquia ajude a população curda em Kobani, a luta por essa cidade da fronteira síria se torna uma guerra da Turquia. À medida que os caixões de jovens curdos turcos que atravessaram para o lado sírio para se juntarem às Unidades de Proteção Popular (YPG) nas batalhas continuam a retornar, a natureza do conflito parece ir mudando. Em 24 de Setembro, sete caixões de combatentes da YPG foram trazidos à Turquia através da travessia fronteiriça de Habur. Em primeiro de Outubro, mais três corpos, um deles de uma mulher, foram trazidos para Diyarbakir pela travessia de Mursitpinar.

Conforme os caixões cruzam a fronteira baixo a sombra das alegações de que a Turquia está usando o Estado Islâmico (Daesh/ISIS) para dar um fim na entidade curda autônoma localizada naquilo que denominam Rojava (“oeste”, ou Curdistão Sírio), a sensibilidade do público curdo se torna mais aguda, e a cada funeral a retórica contra a AKP se torna mais amarga. Certamente as opções do governo turco, esmagado entre curdos e a Daesh, vão se estreitando.

Aqueles que não reconhecem fronteiras

Como estão os ânimos do outro lado da fronteira? Conversei com o porta-voz do YPG Redur Xelil, em Qamishli, a cidade mais proeminente do cantão de Jazeera, em um prédio usado como Ministério da Defesa em uma rua bloqueada com barreiras de concreto. Xelil disse que o número de curdos vindos do norte, que ele chama de Bakur (Turquia), vem crescendo e que ele não tem nenhuma animosidade para com a Turquia. Ele diz, “O número de combatentes do YPG chegou à 45.000; 35% são mulheres. A porcentagem de combatentes do PKK [Partido dos Trabalhadores do Curdistão] que se juntaram a nós não passa de 10%. Eles atuam em sua maioria nos comandos e treinamentos. O número de pessoas que estão vindo da Turquia também vem crescendo. Recentemente, 300 jovens atravessaram para Kobani. Há mais gente nesse momento esperando para atravessas, mas não sei qual a quantidade.”

O chauvinismo turco e árabe não deixa Rojava, com seu experimento de autonomia, e particularmente Kobani, em paz. A Turquia, ao exigir dos curdos que deem fim a sua autonomia e se juntem a outros grupos de oposição para combater o regime do presidente sírio Bashar al-Assad como condição para ajudar Kobani, parece estar em sintonia com o ISIS. Com suas ofensivas, o ISIS entregou cartas poderosas para o governo turco e sua busca por subjugar os curdos.

Mas é claro, o ISIS tem suas próprias razões para atacar. Xelil listou ao Al-Monitor quais são essas razões: Kobani é a ligação entre os cantões de Afrin e Jazeera. Kobani está entre Cerablus e Tell Abyad, controladas pelo ISIS. O ISIS quer conectar esses dois centros capturando Kobani. Também há uma passagem para a Turquia em Kobani, que o ISIS deseja. Essas são razões estratégicas. Também existem motivos imateriais. Kobani foi a primeira cidade a ser liberada do regime [Assad] em 19 de Julho de 2012. Apesar de o ISIS ser guiado por uma ideologia islâmica radical, ele ainda é uma organização chauvinista árabe. Além disso, o ISIS perdeu desastrosamente Jazeera e quer se vingar.

Curdos garantem que não haverá ataques à Turquia vindos de Rojava

Quando a conversa chegou nas alegações de ajuda turca ao ISIS, Xelil tirou de sua gaveta as cédulas de identidades de cidadãos turcos mortos entre as fileiras dos ISIS, uma identidade militar turca e um passaporte estrangeiro carimbado pela alfândega turca. Disse: “Estamos criticando a Turquia porque temos expectativas com ela. Dividimos uma extensa fronteira com a Turquia. Em Rojava, olhamos para a Turquia como uma amiga, mas vemos que todos terroristas chegam através da Turquia. Nos passaportes dos terroristas estrangeiros estão selos de entrada dos aeroportos de Ancara e Istambul. Para além da questão do apoio ao ISIS, não queremos nem que a Turquia continue neutra. Ela tem estar conosco. Não somos parte dos problemas da Turquia com o PKK. Isso é um problema interno dela. Nós garantimos que nunca haverá um ataque contra a Turquia vindo de Rojava. Mas ela está tratando as baixas do ISIS em seus hospitais. Está abrindo seus portões para eles com uma faixada de assistência humanitária. Nós não podemos nem levar os nossos feridos para a Turquia, ou só com muitíssima dificuldade. As instalações que deveriam ser dadas a nós estão sendo oferecidas ao ISIS. Temos testemunhas dizendo que a Turquia está dando armas para o ISIS.”

Quando perguntado se o YPG está cooperando na escolta do envio de suprimento militar turco para o destacamento na Tumba de Salomão Shah, na Síria, Xelil respondeu: “Num determinado momento, cooperamos com o exército turco, mas depois o ISIS disse que o comboio turco vindo por Kobani não poderia passar por seu território para ir até a tumba. Agora o ISIS está oferecendo passagem para o exército da Turquia através de Cerablus. A tumba tem um valor simbólico para nós também. Ela não será danificada. Garantimos protegê-la.”

Mulheres curdas na YPJ

Depois de nossa conversa com Xelil, encontrei a Deputada Ministra da Defesa Galiye Nimet. Perguntei a ela sobre a ala feminina da YPG, a YPJ (Unidades de Proteção das Mulheres), e as combatentes mulheres vindas da Turquia. Elas disse que as mulheres curdas estavam igualmente envolvidas tanto nas questões de defesa quanto nos serviços sociais. “Preparamos campos de treinamento para mulheres nos três cantões. Mulheres estão ativas em todas as frentes,” disse. “Dos primeiros 20 mártires que tivemos quando o ISIS atacou Kobani, 10 eram mulheres. No último ano, dos 700 de nossos mártires da YPG, 200 eram mulheres. Nossa primeira mártir mulher foi Selmo Guliselmo, que tombou em Aleppo em 2012. Antes da revolução de Rojava, treinávamos mulheres em pequenos grupos. A grande maioria das mulheres combatentes são curdas. Algumas mulheres árabes se juntaram a nós dos lugares que liberamos do ISIS. Depois dos combates em Serikaniye, as mulheres curdas da Turquia também se juntaram a nós. A quantidade é muito maior agora, mas não posso lhe dar um número exato.”

Recordei Nimet das lendas que ouvimos de que militantes do ISIS temem encontrar mulheres combatentes. Ela respondeu, “Isso não é um mito, é a realidade. Eu pessoalmente encontrei combatentes do ISIS cara-a-cara. Mulheres combatentes afetam a psique deles. Eles creem que não irão para o paraíso se forem mortos por mulheres. É por isso que fogem quando veem mulheres. Vi isso pessoalmente no fronte de Celaga. Nós monitoramos as chamadas de rádio deles. Quando eles ouvem uma voz de mulher na transmissão ficam histéricos.”

Em suma, apesar de existir cidadãos turcos nas fileiras do ISIS, o número de homens e mulheres vindos da Turquia para se juntar ao YPG e ao YPJ vem crescendo. Forças opostas da Turquia estão entrando em confronto umas com as outras para além da fronteira. Quando se junta a isso as obscuras relações do governo da Turquia com os vários atores da crise síria, não é difícil de se ver que essa guerra está cada vez mais se tornando uma guerra da Turquia.

Autor: Fehim Taştekin
Publicado em 8 de Outubro de 2014
Traduzido para o português à partir da tradução para o inglê de Timur Goksel


Leia o original em: http://www.al-monitor.com/pulse/originals/2014/10/turkey-syria-kurds-isis-kobani-war.html

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Movimentos de libertação nacional adoptam referências libertárias

8th
Oct. × ’14

(Copiado de Colectivo Libertário Evora, por favor visitem o site).

Nos últimos anos vários movimentos por todo o mundo têm vindo a assumir posições e instrumentos de luta próprios dos movimentos libertários. A democracia de base e directa, a autogestão, a recusa do Estado e a afirmação inalienável dos direitos individuais constituem hoje referências importantes na luta pela construção de uma nova sociedade. Os zapatistas são disso um exemplo e mantêm contactos muito estreitos com movimentos libertários em todo o mundo. Esse é o caso também de muitas lutas indígenas em vários países da América do Sul e Central, que cada vez têm mais visibilidade. Ganha também relevo o posicionamento, cada vez mais perto das posições libertárias, dos vários movimentos que lutam pela independência do Curdistão. O principal líder do Partido dos Trabalhadores Curdos (PKK), preso na Turquia há 14 anos – e que ontem veio propôr o fim da luta armada – é disso exemplo. Abdullah Öcalan e o seu partido, depois de uma fase inicial de afirmação marxista-leninista, abandonaram estas referências ideológicas (que hoje consideram “um erro”) e afirmam-se como socialistas anti-Estado e de raiz libertária. Noutros países, e junto de outros povos de religião muçulmana (árabes ou não), as referências libertárias também têm vindo a crescer rapidamente nos últimos anos, adequando-se perfeitamente, em muitos casos, às formas tradicionais de organização daqueles povos, muitas vezes assentes numa rede de clãs, tribos e comunidades locais que vêem o Estado como um intruso. (Nota CLE)

“O Confederalismo Democrático do Curdistão não é um sistema estatal, mas sim um sistema democrático de pessoas sem Estado. Com as mulheres e a juventude na vanguarda é um sistema no qual todos os sectores da sociedade desenvolverão as suas organizações democráticas próprias. É uma prática política exercida pelos cidadãos livres e confederados, em igualdade para escolherem os seus representantes regionais. Está baseado na sua própria força e perícia. O seu poder deriva das pessoas em todas as áreas e, incluindo a economia, procurar-se-à a auto-suficiência”.
Abdullah Öcalan, “Ao Povo Curdo e à Comunidade Internacional”.
 

O Confederalismo Democrático é a proposta de Abdullah Öcalan para uma solução para a questão curda, para os problemas do Médio Oriente, mas não apenas, já que considera que esta prática política pode ser a chave para a libertação e para a verdadeira democratização dos povos do mundo. O Confederalismo Democrático é o programa e o objectivo dos partidos e outros colectivos que se agrupam debaixo da sigla do KCK (União do Povo Curdo)

Ainda que na sua origem o PKK (Partido dos Trabalhadores Curdos) e Öcalan, como o seu principal ideólogo, lutassem a partir de uma perspectiva marxista-leninista pela criação de um Estado curdo, com o passar do tempo tornaram-se visíveis os erros desta concepção da libertação social e nacional e Abdullah Öcalan, influenciado por pensadores como o anarquista Murray Bookchin ou o sociólogo Immanuel Wallerstein evoluiu de um socialismo de raiz centralizadora e estatista para um socialismo de carácter libertário, um socialismo democrático, em que a administração “possa ser chamada administração política não estatal ou democracia sem Estado”.

Öcalan desenvolveu uma crítica ao Estado-Nação que o levou a interpretar o direito dos povos à autodeterminação como “a base para o estabelecimento de uma democracia de base, sem necessidade de procurar  novas fronteiras políticas”.

No seu livro “O Confederalismo Democrático” (pág. 21) , Öcalan apresenta esta forma de organização social do seguinte modo:

“Este tipo de autoridade ou administração pode ser chamada administração política não estatal ou democracia sem Estado. Os processos de tomada de decisão democráticos não devem ser confundidos com os processos conhecidos como os da administração pública. Os Estados só devem administrar enquanto as democracias governam. Os Estados estão fundados no poder, as democracias estão fundadas no consenso colectivo. O mandato no Estado é determinado por decreto, ainda que possa em parte ser legitimado através de eleições. As democracias utilizam o método de eleições directas. O Estado usa a coerção como meio legítimo. As democracias assentam na participação voluntária. O Confederalismo Democrático está aberto a outros grupos ou facções políticas. É flexível, multi-cultural, anti-monopólios e orientado para o consenso. A ecologia e o feminismo são pilares centrais. No quadro deste tipo de auto-administração tona-se necessária uma economia alternativa que incremente os recursos da sociedade em vez de explorá-los e assim dar resposta às múltiplas necessidades da sociedade”.
 

O Confederalismo Democrático recusa o centralismo e baseia o seu confederalismo na tradição e herança colectiva que, no povo curdo, se encontra na organização em clãs e tribal. Este tipo de organização sempre se opôs aos impérios e aos Estados que tentaram centralizam o poder, ainda que, como assinala Öcalan, estas formas sociais tribais também se possam converter em instituições parasitárias e, por isso, se devam integrar na luta pela mudança democrática.

No que diz respeito ao Estado, Öcalan é um profundo crítico do seu papel, mas entende que a sua abolição total não é possível para já, pelo que o Confederalismo Democrático é a ferramenta que a partir da organização de base democrática, à margem do controlo estatal, possibilitará a superação do Estado logo que se demonstrem as capacidades do Confederalismo Democrático. No entanto, esta convivência que pode existir com o Estado não significa uma subjugação a este, pois ainda que o Confederalismo Democrático defenda uma política de paz, as confederações democráticas devem manter as suas forças de autodefesa para se protegerem dos ataques do Estado (que Öcalan define como uma entidade militarmente estruturada e para quem a guerra e a militarização da sociedade são questões-chave) e assim exercerem o seu direito legítimo à defesa.

Como se pode ler no extracto citado da obra de Öcalan, este tipo de organização política não estatal requere uma organização económica alternativa, esta organização económica alternativa proposta pelo Confederalismo Democrático é o socialismo. Na origem do pensamento de Öcalan e do PKK, como já se disse, estava o marxismo-leninismo mas esta concepção da libertação social foi abandonada e criticada por Öcalan que colocou o socialismo democrático como alternativa à economia actual. Este socialismo tem um marcado carácter local e autogestionário, aliás como não podia ser de outro modo numa proposta política que recusa o Estado  e que assume a democracia directa como alternativa.

Por isso, tanto face à barbárie capitalista como à centralização do socialismo de Estado, o Confederalismo Democrático coloca a posse dos recursos económicos não nas mãos do Estado, mas sim na sociedade. Esta economia ter-se-á que focalizar numa redistribuição justa dos recursos económicos através dos benefícios sociais, não na acumulação de riqueza ou na sobreprodução. Tal como o expressa  Öcalan:

 “Uma das principais razões do deteriorar da sociedade está nos efeitos nocivos dos mercados financeiros. A produção de necessidades artificiais, a procura interminável de novos mercados de consumo e a cobiça sem limites de lucros cada vez maiores são os responsáveis pela diferença cada vez mais abismal entre pobres e ricos, fazendo aumentar diariamente o batalhão dos que vivem abaixo do limiar de pobreza ou incluso dos que passam fome. Uma política económica deste tipo já não é tolerável. Este é , por isso, o maior desafio do projecto socialista: implementar uma política económica alternativa que não aspire apenas ao lucro pelo lucro, mas sim a uma distribuição justa dos recursos e à plena satisfação das necessidades básicas do conjunto da sociedade”. “Guerra e Paz no Curdistão”, pág. 36.
 

O socialismo não é apenas uma alternativa económica para a distribuição justa dos recursos e para que estes estejam nas mãos da sociedade e não do Estado ou das corporações, mas é uma alternativa que se torna também necessária já que é a única que pode conservar o meio ambiente, sendo por isso a única compatível com outro dos pilares do Confederalismo Democrático: a ecologia. Esta importância da ecologia e a sua relação com o socialismo é resumida num fragmento de “Guerra e Paz no Curdistão”:

“Um modelo ecológico de sociedade é, por essência, um modelo socialista. O equilíbrio ecológico só é possível se passarmos duma sociedade alienada, baseada no despotismo, para uma sociedade socialista. Seria uma ilusão acreditarmos que a preservação do meio ambiente é compatível com o sistema capitalista. Pelo contrário, o sistema capitalista contribui avidamente paraa  devastação do meio ambiente. Deve ter-se seriamente em linha de conta a protecção ecológica no processo de mudança social”. “Guerra e Paz no Curdistão”, pág. 35
 

Outra das questões que o Confederalismo Democrático coloca como primordial e que é um dos pilares da sua proposta é a libertação da mulher.

Na sua crítica ao Estado, Öcalan assinala o sexismo como sendo um dos pilares ideológicos do Estado. Assinala como o Estado e o capitalismo convertem a mulher tanto em objecto sexual como em mercadoria e que só permitem que se desenvolva para que seja convertida num acessório da social patriarcal. Estabelece também uma relação entre o poder, o estatismo e o sexismo. Por isso um dos pilares do Confederalismo Democrático é o feminismo. Esta necessidade da luta pela emancipação da mulher ainda aumenta mais quando o islamismo sexista se impõe nos Estados que  ocupam o Curdistão, como é o caso da ditadura islâmica do Irão. Percebe-se assim que o PJAK (Partido pela Vida Livre do Curdistão), integrado no KCK e cujo âmbito de actuação é o território iraniano, esteja formado por numerosas mulheres que, como elas próprias dizem, lutam tanto pela libertação nacional como pela libertação feminina.

As liberdades individuais, como a liberdade de expressão e de decisão, são outras das bases do Confederalismo Democrático, pelas quais luta o KCK, e que juntamente a outros pontos já mencionados integram a proposta para a libertação do Curdistão, que é um exemplo para os povos do mundo.

Fonte: http://solidaridadkurdistan.wordpress.com/confederalismo-democratico/

http://www.alasbarricadas.org/noticias/node/24069

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Turquia trava curdos que querem ir defender Kobani e Erdogan responde a Biden

8th
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O Governo da Turquia prometeu “fazer tudo” o que puder para evitar que a cidade síria de Kobani caia nas mãos dos radicais do grupo “Estado Islâmico”. Mas este sábado, o exército turco recorreu a canhões de água e gás lacrimogéneo para impedir a passagem da fronteira a curdos, que querem juntar-se à defesa da estratégica cidade fronteiriça, no norte da Síria.

O presidente turco respondeu entretanto a Joe Biden. Recep Tayyip Erdogan afirma que, “até agora, 6000 pessoas foram proibidas de entrar na Turquia e 1000 foram deportadas”, lamentando os comentários do vice-presidente norte-americano.

Quinta-feira, na Universidade de Harvard, Biden afirmou que Ancara e o outros parceiros no Golfo Pérsico “gastaram milhões de dólares” e forneceram “toneladas de armas a qualquer um que combatesse Assad”, mas quem recebeu o apoio foi “a Frente Al-Nusra, a Al-Qaeda e os elementos extremistas da jihad”, responsabilizando a Turquia e outros aliados pela ascensão do grupo “Estado Islâmico”.

Junto à fronteira, os refugiados expressam o desejo de “regressar a Kobani”, às suas “terras”. Pedem a “Deus” para os proteger do conflito. Afirmam que não querem “mais nada, apenas regressar a casa”.

Segundo as estimativas, cerca de 180 mil pessoas atravessaram a fronteira para a Turquia só para escapar aos combates em torno de Kobani. É tão perto e ao mesmo tempo tão longe de casa que muitos muçulmanos começaram a celebrar, este sábado, o Eid al-Adha, a Festa do Sacrifício, que coincide com o fim da peregrinação a Meca.

fonte: http://pt.euronews.com/2014/10/04/turquia-trava-curdos-que-querem-ir-defender-kobani-e-erdogan-responde-a-biden

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Obama quer derrotar o Estado Islâmico — mas não tanto

8th
Oct. × ’14

(Texto publicado originalmente em http://c4ss.org/content/31186, visite o site)

por .

A administração Obama recentemente anunciou uma política de intervenção limitada no Iraque, usando ataques com drones para impedir a conquista de áreas curdas autônomas pelo Estado Islâmico (ISIS). O aliado principal dos Estados Unidos na região é o Governo Regional do Curdistão liderado por Massoud Barzani e o suporte americano contra o Estado Islâmico se limita às áreas curdas dentro do Iraque.

O concorrente principal de Barzani pela lealdade do povo curdo é Abdullah Ocalan, o líder do Partido dos Trabalhadores Curdos (PKK), que é ativo em todos os quatro países com minorias curdas significativas.

Quando liderava o PKK, que era originalmente marxista-leninista, de dentro de uma prisão na Turquia, Ocalan estudou o trabalho do anarquista Murray Bookchin e adotou uma variação de sua filosofia “municipalista libertária” (que ele denominou “confederalismo democrático”). A filosofia de Bookchin chamou a atenção de Ocalan no meio de uma onda de interesse no pensamento libertário socialista entre os nacionalistas curdos após a queda da União Soviética. Ocalan via o confederalismo democrático — também influenciado por lutas horizontalistas como a do EZLN mexicano — como alterativa ao capitalismo corporativo ocidental e à economia de controle soviética.

O confederalismo democrático se tornou a base para o Grupo de Comunidades no Curdistão, uma tentativa do PKK de administrar territorialmente as áreas curdas. Trata-se de um modelo muito próximo às democracias diretas federadas buscadas por Bookchin, espelhadas na Comuna de Paris, nos sovietes que surgiram na Rússia depois da Revolução de Fevereiro e nas células anarquistas locais da Revolução Espanhola. A economia é governada por uma mistura de autogestão pelos trabalhadores e planejamento participativo. As mulheres são importantes nas unidades municipais e de milícia e têm lutado valentemente — por motivos compreensíveis — contra o Estado Islâmico.

O PKK é listado ainda como uma organização terrorista por conta de sua insurreição violenta contra o governo turco, embora tenha mantido uma trégua com a Turquia durante o ano passado e tenha ganho significativa autonomia territorial nas áreas curdas do leste turco. Desde a trégua, o PKK moveu a maior parte de suas milícias para o Curdistão iraquiano em abril.

O apoio ao PKK seria provavelmente muito mais efetivo se Obama realmente quisesse parar a penetração do Estado Islâmico no Curdistão iraquiano, especialmente dada a paz do partido com a Turquia e a independência de facto das áreas curdas no nordeste da Síria. O PKK e milícias aliadas na Síria têm tido muito mais sucesso militar contra as forças do Estado Islâmico do que o Exército Livre da Síria, que é apoiado pelo Ocidente. O PKK defendeu as áreas dos Yazidis do Curdistão iraquiano e realocou os civis em risco quando as forças Peshmerga de Barzani se dissolveram. Os combatentes do PKK da Turquia evitaram a queda de Kobane no Curdistão sírio, que está além das linhas de comunicação entre as áreas do Estado Islâmico na Síria e no Iraque. Ocalan e o PKK, ao contrário de Barzani, têm apoio popular em todo o Curdistão, não só na sua região iraquiana.

Isso tem pouca probabilidade de acontecer, porém. A única coisa pior que uma vitória do ISIS, para o estado americano seria uma demonstração da alternativa tanto ao capitalismo corporativo quanto ao socialismo de estado, baseada no descentralismo, na democracia direta e na autogestão.

O Curdistão tem muito em comum com a Coreia do pós-guerra. No vácuo de poder deixado pela saída das forças japonesas da península coreana, como escreve o companheiro de C4SS William Gillis (“Mass Graves“, reproduzido no Austro-Athenian Empire, 25 de maio de 2008), “algo incrível aconteceu. Os anarquistas coreanos, defensores de longa data das lutas de resistência, surgiram e formaram uma federação nacional de conselhos municipais e de trabalhadores para supervisionar um projeto enorme de reforma agrária”. As autoridades de ocupação soviéticas no norte rapidamente impediram o projeto, liquidando o projeto anarquista e instalando o regime de Kim. As forças americanas foram significativamente mais lentas, dando à Coreia um intervalo de paz e liberdade. Ao chegarem, porém, os comandantes militares americanos “não tinham protocolos para lidar com federações regionais e comunas anarquistas”. Assim, eles restauraram a propriedade das terras para a aristocracia expropriada e ajudaram os senhores a estabelecerem um governo militar. Com o começo da Guerra da Coreia, o assassinato dos anarquistas e de outros esquerdistas pelo regime militar, que já ocorria antes, foi multiplicado. Pelo menos 100 mil suspeitos anarquistas, socialistas e comunistas ou simpatizantes foram enterrados em valas comuns.

O estado americano preferiria que o ISIS não vencesse. Mas, assim como os fazendeiros em A Revolução dos Bichos de George Orwell, os homens têm um interesse em comum com os porcos que passa por cima de todos os outros: eles não querem que os “animais” — ou seja, as pessoas comuns — governem a si mesmos.

Traduzido por Erick Vasconcelos.

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