À medida que a fumaça se levanta da cidade síria de Kobani, tanques militares da Turquia se posicionam no lado turco da fronteira, como se vê próximo a passagem de Mursitpinar na fronteira turco-síria da província de Sanliurfa. 8 de Outubro de 2014. (foto por REUTERS/Umit Bektas)
Kobani está se tornando uma guerra da Turquia.
Enquanto o governo do Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP) continua listando condições a serem cumpridas pelo Partido da União Democrática (PYD) para que a Turquia ajude a população curda em Kobani, a luta por essa cidade da fronteira síria se torna uma guerra da Turquia. À medida que os caixões de jovens curdos turcos que atravessaram para o lado sírio para se juntarem às Unidades de Proteção Popular (YPG) nas batalhas continuam a retornar, a natureza do conflito parece ir mudando. Em 24 de Setembro, sete caixões de combatentes da YPG foram trazidos à Turquia através da travessia fronteiriça de Habur. Em primeiro de Outubro, mais três corpos, um deles de uma mulher, foram trazidos para Diyarbakir pela travessia de Mursitpinar.
Conforme os caixões cruzam a fronteira baixo a sombra das alegações de que a Turquia está usando o Estado Islâmico (Daesh/ISIS) para dar um fim na entidade curda autônoma localizada naquilo que denominam Rojava (“oeste”, ou Curdistão Sírio), a sensibilidade do público curdo se torna mais aguda, e a cada funeral a retórica contra a AKP se torna mais amarga. Certamente as opções do governo turco, esmagado entre curdos e a Daesh, vão se estreitando.
Aqueles que não reconhecem fronteiras
Como estão os ânimos do outro lado da fronteira? Conversei com o porta-voz do YPG Redur Xelil, em Qamishli, a cidade mais proeminente do cantão de Jazeera, em um prédio usado como Ministério da Defesa em uma rua bloqueada com barreiras de concreto. Xelil disse que o número de curdos vindos do norte, que ele chama de Bakur (Turquia), vem crescendo e que ele não tem nenhuma animosidade para com a Turquia. Ele diz, “O número de combatentes do YPG chegou à 45.000; 35% são mulheres. A porcentagem de combatentes do PKK [Partido dos Trabalhadores do Curdistão] que se juntaram a nós não passa de 10%. Eles atuam em sua maioria nos comandos e treinamentos. O número de pessoas que estão vindo da Turquia também vem crescendo. Recentemente, 300 jovens atravessaram para Kobani. Há mais gente nesse momento esperando para atravessas, mas não sei qual a quantidade.”
O chauvinismo turco e árabe não deixa Rojava, com seu experimento de autonomia, e particularmente Kobani, em paz. A Turquia, ao exigir dos curdos que deem fim a sua autonomia e se juntem a outros grupos de oposição para combater o regime do presidente sírio Bashar al-Assad como condição para ajudar Kobani, parece estar em sintonia com o ISIS. Com suas ofensivas, o ISIS entregou cartas poderosas para o governo turco e sua busca por subjugar os curdos.
Mas é claro, o ISIS tem suas próprias razões para atacar. Xelil listou ao Al-Monitor quais são essas razões: Kobani é a ligação entre os cantões de Afrin e Jazeera. Kobani está entre Cerablus e Tell Abyad, controladas pelo ISIS. O ISIS quer conectar esses dois centros capturando Kobani. Também há uma passagem para a Turquia em Kobani, que o ISIS deseja. Essas são razões estratégicas. Também existem motivos imateriais. Kobani foi a primeira cidade a ser liberada do regime [Assad] em 19 de Julho de 2012. Apesar de o ISIS ser guiado por uma ideologia islâmica radical, ele ainda é uma organização chauvinista árabe. Além disso, o ISIS perdeu desastrosamente Jazeera e quer se vingar.
Curdos garantem que não haverá ataques à Turquia vindos de Rojava
Quando a conversa chegou nas alegações de ajuda turca ao ISIS, Xelil tirou de sua gaveta as cédulas de identidades de cidadãos turcos mortos entre as fileiras dos ISIS, uma identidade militar turca e um passaporte estrangeiro carimbado pela alfândega turca. Disse: “Estamos criticando a Turquia porque temos expectativas com ela. Dividimos uma extensa fronteira com a Turquia. Em Rojava, olhamos para a Turquia como uma amiga, mas vemos que todos terroristas chegam através da Turquia. Nos passaportes dos terroristas estrangeiros estão selos de entrada dos aeroportos de Ancara e Istambul. Para além da questão do apoio ao ISIS, não queremos nem que a Turquia continue neutra. Ela tem estar conosco. Não somos parte dos problemas da Turquia com o PKK. Isso é um problema interno dela. Nós garantimos que nunca haverá um ataque contra a Turquia vindo de Rojava. Mas ela está tratando as baixas do ISIS em seus hospitais. Está abrindo seus portões para eles com uma faixada de assistência humanitária. Nós não podemos nem levar os nossos feridos para a Turquia, ou só com muitíssima dificuldade. As instalações que deveriam ser dadas a nós estão sendo oferecidas ao ISIS. Temos testemunhas dizendo que a Turquia está dando armas para o ISIS.”
Quando perguntado se o YPG está cooperando na escolta do envio de suprimento militar turco para o destacamento na Tumba de Salomão Shah, na Síria, Xelil respondeu: “Num determinado momento, cooperamos com o exército turco, mas depois o ISIS disse que o comboio turco vindo por Kobani não poderia passar por seu território para ir até a tumba. Agora o ISIS está oferecendo passagem para o exército da Turquia através de Cerablus. A tumba tem um valor simbólico para nós também. Ela não será danificada. Garantimos protegê-la.”
Mulheres curdas na YPJ
Depois de nossa conversa com Xelil, encontrei a Deputada Ministra da Defesa Galiye Nimet. Perguntei a ela sobre a ala feminina da YPG, a YPJ (Unidades de Proteção das Mulheres), e as combatentes mulheres vindas da Turquia. Elas disse que as mulheres curdas estavam igualmente envolvidas tanto nas questões de defesa quanto nos serviços sociais. “Preparamos campos de treinamento para mulheres nos três cantões. Mulheres estão ativas em todas as frentes,” disse. “Dos primeiros 20 mártires que tivemos quando o ISIS atacou Kobani, 10 eram mulheres. No último ano, dos 700 de nossos mártires da YPG, 200 eram mulheres. Nossa primeira mártir mulher foi Selmo Guliselmo, que tombou em Aleppo em 2012. Antes da revolução de Rojava, treinávamos mulheres em pequenos grupos. A grande maioria das mulheres combatentes são curdas. Algumas mulheres árabes se juntaram a nós dos lugares que liberamos do ISIS. Depois dos combates em Serikaniye, as mulheres curdas da Turquia também se juntaram a nós. A quantidade é muito maior agora, mas não posso lhe dar um número exato.”
Recordei Nimet das lendas que ouvimos de que militantes do ISIS temem encontrar mulheres combatentes. Ela respondeu, “Isso não é um mito, é a realidade. Eu pessoalmente encontrei combatentes do ISIS cara-a-cara. Mulheres combatentes afetam a psique deles. Eles creem que não irão para o paraíso se forem mortos por mulheres. É por isso que fogem quando veem mulheres. Vi isso pessoalmente no fronte de Celaga. Nós monitoramos as chamadas de rádio deles. Quando eles ouvem uma voz de mulher na transmissão ficam histéricos.”
Em suma, apesar de existir cidadãos turcos nas fileiras do ISIS, o número de homens e mulheres vindos da Turquia para se juntar ao YPG e ao YPJ vem crescendo. Forças opostas da Turquia estão entrando em confronto umas com as outras para além da fronteira. Quando se junta a isso as obscuras relações do governo da Turquia com os vários atores da crise síria, não é difícil de se ver que essa guerra está cada vez mais se tornando uma guerra da Turquia.
Autor: Fehim Taştekin
Publicado em 8 de Outubro de 2014
Traduzido para o português à partir da tradução para o inglê de Timur Goksel
Leia o original em: http://www.al-monitor.com/pulse/originals/2014/10/turkey-syria-kurds-isis-kobani-war.html