Por Catherine James
do site News.co.au.
A explosão irrompe no vilarejo adormecido, às 3 da manhã. Em um instante, o pior terror de Zozan Ahmet Veli se concretizou — o Daesh chegou.
Pulou de sua cama, chacoalhando seu marido para que acordasse. Ele não se levantou.
Correu até suas crianças e sua mãe, atordoadas e já despertas pelo barulho da bomba.
Outra tentativa desesperada de acordar seu marido se mostrou inútil. Ele estava lacrado em um sono profundo, induzido por remédios.
Outros no vilarejo com 50 lares de Zorzan já haviam começado a correr para o vilarejo vizinho, a 2 quilômetros de distância.
Nesse momento, tendo o terror tomado Zozan, ela fez a impossível decisão de fugir com seus três filhos e sua mãe — e deixar seu marido adormecido na cama.
“Não conseguimos trazê-lo”, disse Zozan. Cada família estava por conta própria.
Seu rosto jovem se contorce em sofrimento por ter sido forçada a escolher entre duas consequências horrendas.
O Estado Islâmico, infame por seu tratamento brutal e impiedoso com aqueles que derrota — especialmente mulheres — já era comentado por quase todo o ano à medida que os militantes tomavam faixas de território na Síria e Iraque, deixando um rastro de vidas e corpos mutilados em sua ascensão.
Então, dois meses atrás, rumores surgiram de que o Daesh se dirigia para o lar de Zozan, Kobani (Ayn al-Arab em árabe), uma província no noroeste da Síria com cerca de 400.000 pessoas que compartilha sua fronteira do norte com a Turquia.
Mas depois de três anos de conflito pelo país, com grande parte região do entorno já tomada pelo Daesh, para onde uma família pode ir?
Assim, como milhares de outras famílias, Zozan e seu marido permaneceram ao passo que os rumores se tornavam fatos — e os fatos causavam o terror. Em breve cairia sobre eles. Um vilarejo próximo conseguiu enfrentar a captura pelo Daesh por três dias. Mas com aquela explosão às 3 da manhã, Zozan sabia que a vez de seu vilarejo havia chegado.
Logo que conseguiram chegar à fronteira com a Turquia, esperaram como muitas outras milhares de pessoas antes de cruzar, mantendo uma esperança de que o Daesh poderia ser parado e eles poderiam voltar para casa.
Filas e mais filas de carros, caminhões e máquinas ainda lotam o portão da fronteira entre Síria e Turquia perto de Kobani, abandonados por seus donos que tinham esperança de cruzar com ao menos alguns de seus bens, mas foram informados pelas autoridades turcas de que não poderiam.
Agora, na relativa segurança da cidade turca do sul Suruç, Zozan chora por seu marido, com o qual não trocou nenhuma palavra desde a noite que fugiu do Daesh com seus filhos.
Seus dois filhos, de cinco e dez anos, e uma filha, de doze, sentam com ela junto com dúzias de outras famílias, todas espremidas em um quarto com nada além das roupas que vestem.
Histórias como essa transbordam só naquela sala, cada uma com sua marca particular de angústia. E essa sala é apenas um vislumbre dos aproximadamente 200.000 que se relata terem cruzado a fronteira nas últimas três semanas.
O doutor Mehmet Resul, um voluntário na primeira equipe de resposta médica na passagem da fronteira síria-turca, diz que as enfermidades físicas são a preocupação mais óbvia quando quando uma pessoa atravessa uma fronteira como refugiada, mas os problemas mais profundos são decorrentes do trauma que todos ali viveram.
Ele descreve um processo no qual as crianças foram avaliadas. Numa fase inicial da avaliação se pede a criança que escolha entre várias cores qual cor ela deseja usar para pintar.
“A maioria das crianças escolheu preto”, ele disse. “Isso não é comum para uma criança”.
“As crianças não são capazes de se expressarem com palavras tão bem como os adultos, mas também não são capazes de mentir sobre suas experiências”, acrescentou.
Um voluntário em um dos poucos campos de refugiados em Suruç, Abdullah Koceroglu, descreve como muitas das crianças que ele encontrou no campo de refugiados procuram pequenos recantos para descansar quando chega a noite.
Assim, de manhã, ele as presenteia com histórias e canções animadas.
“A melhor forma para esses crianças se recuperarem é tocar e cantar e sorrir muito”, diz.
No mesmo campo, Aysa Mehmet, de 17 anos, permanece em uma tenda plástica cinza com toda sua família — pais, três irmãs e dois irmãos.
É quente no acampamento, e ainda mais quente na tenda que mal deixa o ar passar. Aysa não fala há quase três dias, depois que sua família cruzou a fronteira até a Turquia na semana passada.
Sua única palavra agora, dita quando impelida a responder a alguém, é “inshallah” — que significa “espero que sim”, ou literalmente, Deus-queira.
Com seu humor imprevisivelmente fora de controle e vendo coisas que não estão ali — incluindo a crença de que voltou para sua cidade de origem — a família de Aysa está perplexa com o que ocorreu com ela.
As causas disso são claras para eles.
O pai e a irmã de Aysa descrevem em detalhes parecidos aos de Zozan e tantas outros como rumores da aproximação do Estado Islâmico seguiram por meses. Então, “repentinamente”, um dia estavam em seu vilarejo de 100 lares, Tahleq.
“Eu vi um soldado do Daesh cerca de 100m de minha casa”, conta seu pai Mehmet Mustafa.
“E daí veio uma bomba. E disse para minha família partir. Eu os acompanhei depois.”
A família fugiu com o que puderam carregar, e então se acamparam na fronteira por dez dias antes de decidirem cruzar.
“Não queríamos atravessar. Esperamos [o Daesh ser derrotado]. Pesávamos que talvez conseguiríamos voltar para nossas casas”, diz Ceylan, a irmã de Aysu.
Foi na fronteira que o trauma de Aysu se pronunciou.
“Um dia quando estávamos atravessando a fronteira houve uma trovoada. Aysu disse, “Isso é uma bomba também”, e sorriu. Mas ficou muito mal depois disso”, disse Ceylan.
“Às vezes ela tem alucinações e vê coisas que não estão ali, como uma cobra ou um rato. Ela está sempre vendo algo que não está ali”, completa.
Apesar de agora não falar mais muito, sua família diz que ela é expressiva de outras formas.
“Ela pega nossas mãos e as segura com muita força”, seu pai diz.
Um médico voluntário no acampamento enviou Aysa para o hospital para receber tratamento. Apesar de ter sido mantida por uma noite no hospital para observação, quando ela retornou para o acampamento era claro que a pequena cidade estava mal equipada para pessoas com casos sérios como aquele de trauma psicológico. Tudo o que deram a Aysu foi uma medicação: 28 dias de antidepressivo e 4 comprimidos de antipsicótico.
De volta a tenda de plástico, Aysu parece alerta mas não interage com as conversas à sua volta. Ela vê o Alcorão, o livro sagrado do Islã, na almofada a sua frente e o agarra, abraçando-o contra o peito, beijando-o, e então o larga rapidamente na almofada.
Um médico a recorda que estão orando para que ela se sinta melhor.
“Inshallah,” ela responde.