por Joris Leverink em 10 de Outubro de 2014
Com jatos de combate sobrevoando e ferozes embates eclodindo entre a polícia turca e manifestantes curdos, Joris Leverink traz informações do Curdistão.
O editor da ROAR, Joris Leverink, está no Curdistão do Norte na fronteira entre Turquia e Síria para noticiar sobre a batalha de Kobanê e a luta curda pela autonomia democrática. Esta é a primeira de uma série de relatos em primeira mão que serão publicados ao longo dos próximos dias.
Depois de alguns dias no Curdistão do Norte, tendo falado com várias pessoas e visto e ouvido mais do que minha cabeça é capaz de razoavelmente processar, chegou a a hora de compartilhar algumas observações e experiências. Dois dias atrás, na terça-feira, 7 de Outubro, curdos por toda a Turquia, mas especialmente na região sudoeste do país, tomaram as ruas em protesto contra o papel da Turquia no massacre que ronda Kobanê. A proporção e intensidade dos protestes são sem precedentes (ao menos desde da violência nos anos 90), assim como a reação do Estado. A opinião compartilhada pela maioria das pessoas que encontrei nos últimos dias é de que esse é o começo de um novo levante curdo.
Antes e qualquer coisa, o que precisa ser deixado absolutamente claro é que os curdos não estão protestando em exigência de uma intervenção militar da Turquia, como foi apresentado em diversos centros de mídia convencionais. Ao contrário, os manifestantes — tanto curdos quanto simpatizantes — exigem o fim do apoio velado da Turquia ao ISIS, e que a fronteira em Kobanê seja aberta para deixar os refugiados saírem e a ajuda humanitária e as armas entrarem. Todas as pessoas com quem falei em Diyarbakir, Urfa, Suruç e nos vilarejos na fronteira concordam em uma coisa: o ISIS não poderia ter crescido o tanto que cresceu e conquistado o tanto que conquistou de Rojava se não fosse o apoio material, financeiro e logístico recebido pelos extremistas pelo Estado Turco.
O Jogo Sujo da Turquia
Em um vilarejo no entorno de Suruç, a cidade turca fronteiriça em frente a Kobanê, alguns jovens — todos curdos sírios — me dizem que não conseguem dormir de noite pelo medo e a preocupação. Pode-se ver Kobanê no horizonte, e colunas de fumaça sobem por sobre a cidade, resultado dos ataques aéreos da coalização, com aviões constantemente sobrevoando sobre nossas cabeças. Esses homens curdos são parte de um grupo de seis famílias que cruzaram a fronteira turca juntas e que agora encontraram refúgio na casa de um fazendeiro local. Eles me confirmam que que viram com os próprios olhos como um vagão entrou na Síria vindo da Turquia, carregado com tanques e munições, com destino a uma localização desconhecida na área controlada pelo ISIS.
Abdurrahman Abdulkhadir, um curdo sírio em torno dos 50 anos que abandonou sua casa vinte dias atrás, é bem claro quanto esse assunto: no vilarejo de Xerbisan (cerca de 30 quilômetro de Kobanê) onde ele tinha uma cafeteria, viu a YPG/YPJ (Forças de Defesa Popular e Forças de Defesa das Mulheres) destruir quatro tanques do ISIS. De acordo com Abdurrahman, o exército turco observou a batalha entre a YPG/YPJ e o ISIS de longe, e não muito tempo depois disso que viu um trem cruzando a Síria vindo da Turquia, carregando exatamente quatro tanques para cobrir as perdas que o ISIS sofreu nas mãos da YPG/YPJ.
Em outra ocasião, ele notou um grupo de homens com “armas de cano longo, como aquelas de franco-atiradores” vindo da Turquia. Isso foi logo depois que a YPG/YPJ tinha forçado o ISIS a se retirar, e esse grupo de homens armados mudou o curso da batalha, eventualmente matando matando mais de oitenta combatentes da YPG/YPJ. Claro que devemos nos lembrar que estes não são fatos profundamente sustentados, mas quando se ouve as mesmas “histórias” e “rumores” de tempos em tempos, vindos de dezenas de fontes diferentes, é difícil não se perguntar se não há algo de verdade neles.
Apoio a Revolução de Rojava
Entre todas diversas conversas que tive com refugiados sírios nos últimos dias, houve um tema recorrente: todas pessoas com quem falei expressaram total apoio a revolução social de Rojava. Um pai de duas crianças, com 42 anos, que agora vive com sua família no quintal de uma mesquita local em Suruç, sobrevivendo da generosidade do município para se alimentarem, deixa bem claro que sua vida nunca foi tão boa quanto quando foi instalado a autonomia democrática em Rojava: “Era lindo. Todo mundo podia desfrutar de suas liberdades, homens e mulheres eram tratados como iguais e não havia atrito entre os diferentes grupos religiosos e étnicos.”
Ele me conta que sua barba ficou branca nas últimas duas semanas: “Nunca vi nada assim em minha vida”. Ele então continua, me explicando que preferia viver numa tenda em Rojava do que ficar aqui na Turquia, onde tem tanto medo do governo que não quer nem me dizer seu nome. “Há duas coisas certas na vida de um curdo: opressão e morte.” Infelizmente, uma coisa que poderia mudar o destino curdo, a revolução de Rojava, não foi outra coisa senão exterminada em Kobanê devido os ataques contínuos do ISIS e os esforços cínicos do governo turco.
Abdurrahman ressalta que o sistema de cantões, um tipo de confederação de comunidades locais que se auto-governam através de conselhos locais e democracia direta, não foi meramente benéfica aos curdos, mas foi um projeto em comum envolvendo todos os grupos étnicos locais, incluindo assírios, iazidís, turcos, árabes e outros.
Wahab e Serhat, dois jovens ativistas da Ação Revolucionária Anarquista (DAF) na Turquia que estão na fronteira há mais de duas semanas para mostrar solidariedade com curdos de Kobanê, ajudam refugiados em ambos os lados da fronteira e fazem a guarda em um dos vilarejos para impedir que aspirantes a jihadistas cruzem a fronteira para se juntar ao ISIS. Eles compartilham a opinião de Abdurrahman: “A revolução em Rojava é contra a formação do estado e as gangues terroristas, é baseada na emancipação e na democracia direta; é sobre autonomia e auto-determinação, e rejeita qualquer forma de hierarquia e autoridade.”
Distúrbios Continuam
Enquanto escrevo essas palavras na cidade de Urfa, posso ouvir a polícia local atirando bombas de gás nos manifestantes pró-curdos a algumas quadras daqui. Ao mesmo tempo, ouço os jatos de combate das forças de coalizão passando à caminho de Kobanê, que está cerca de cinquenta quilômetros ao sul daqui. A situação no Curdistão do Norte (sudoeste da Turquia) está escalando a cada minuto. Apesar dos pedidos do líder da PKK, Öcalan, e o líder do Partido Democrático Popular (HDP), Demirtaş, para cessar a violência, outras dez mortes foram relatadas hoje, somadas as mais de vinte mortes dos últimos dois dias.
As vítimas incluem não só manifestantes curdos, mas também oficiais de polícia e apoiadores do ISIS, espalhando o medo de uma escalada do conflito civil nas províncias do sul da Turquia. A previsão de que uma nova geração de curdos está radicalizada ao ponto de que até a PKK tem dificuldade em mantê-los alinhados parece estar se tornando verdade, e só podemos nos perguntar como as ruas, bairros e cidades do Curdistão do Norte ficarão se (ou quando) Kobanê eventualmente cair nas mãos do ISIS.
Joris Leverink é um escritor freelance em Istambul e editor da ROAR Magazine Você pode segui-lo no Twitter em @Jorislever.
Leia o original em inglês na página da ROAR Magazine: http://roarmag.org/2014/10/kurdistan-kobane-turkey-isis/